A queda do Muro de Berlim, transmitida
pelas ondas televisivas mundo afora, foi celebrada como uma promessa de
novos e felizes dias aos homens.
As pessoas eram quase que obrigadas a
celebrar a queda do muro. Muitos não entendiam muito bem o porquê. O que
tinham a ver com aquela história que o repórter contava, fazendo força
para chorar em frente à câmera. Estaríamos todos inaugurando uma nova
etapa da nossa civilização.
Imediatamente, exigiu-se dos Estados
mais pobres e desarmados que afrouxassem suas soberanias. Não haveria
mais inimigos. Estaríamos todos em território comum.
A promessa sempre foi sedutora. Mas para
alcançar o eldorado capitalista, deveríamos estar adequados à este novo
tempo. O neoliberalismo exigiu (e exige) do homem um processo
recivilizatório. Temos a permanente percepção de que estamos inadequados
no mundo. Caso algo não ocorresse bem em nossas vidas, não haveríamos
de identificar nenhum inimigo político ou estrutural. A culpa estaria
dentro de nós mesmos. Deveríamos estar em condições de competir no
Mercado, dentro dos novos padrões de eficiência.
Os anos 90 foi a década da explosão dos
livros de autoajuda. Pronto! Passamos a ter em quase todas as
prateleiras das livrarias (cada vez com menos livros, porém mais
iluminadas e chamativas) manuais de como sobreviver neste novo mundo,
seja no mundo profissional e corporativo, seja nas relações humanas cada
vez mais marcadas pelas necessidades individuais e de euforia
permanente. Sim, nossas relações pessoais passaram também a ser
orientadas pela lógica descartável do consumo.
Não que o sonho dourado dos 90 tenha
sido grande coisa. Na verdade, ele nunca passou de promessa. De ilusão.
Tão frágil como um computador. Tão efêmero como uma super-liquidação.
Tão instantâneo como uma novidade tecnológica.
Na prática, este sonho só pareceu
possível de ser concretizado no quintal dos outros. Ou do outro lado da
fronteira, do outro lado do mar.
Muitos se atiraram ao mar em jangadas,
barcos, botes, nadando. Outros se entregaram aos chacais e foram
perseguidos no deserto. Entregaram tudo o que tinham para
narcotraficantes, aproveitadores e estelionatários para cruzar a
fronteira dos Estados Unidos.
Por falar em fronteiras, descobrimos
decepcionados que o mundo permanecia sim com muitas fronteiras, cada vez
mais fortalecidas, eletrificadas, cercadas de cães selvagens e de seres
humanos insensíveis que preferem perseguir seus semelhantes do que
enxergar a olho nu a grande mentira deste sistema que nos prometia
liberdade.
As fronteiras nunca foram tão vigiadas.
Descobrimos estarrecidos que o mercado comum, os blocos econômicos, a
zona do Euro, as comunidades internacionais e o mercado global permitem
apenas a circulação de moedas, ações e mercadorias. Nós, seres humanos
comuns de segunda classe, sobretudo os nascidos nas periferias do mundo,
nunca fomos tão descartáveis e inconvenientes.
Devemos dar vivas e saudar as maravilhas
da globalização ao desregularmos nossas garantias trabalhistas, nossas
taxas alfandegárias. Devemos agradecer felizes ao perdermos nossos
empregos, destruirmos nossas indústrias, abrimos mão das pesquisas. Ao
entregarmos as riquezas naturais e minerais para os grandes cartéis
internacionais.
Para obter lucro e estender os domínios
deste “mercado comum”, o imperialismo construiu novas guerras. Derrubou
governos, conspirou, despejou bombas e mais bombas em troca de dinheiro e
petróleo. Atormentou as geopolíticas regionais. Desequilibrou o sistema
político internacional. Enriqueceu genocidas, construiu novas
ditaduras, se aliou a déspotas assassinos, grupos religiosos,
desapropriou territórios, deixou milhões de seres humanos sem pátria e
sem terra.
A “quebra das soberanias”, o desrespeito
às culturas e particularidades locais, o sequestro dos Estados pelo
Mercado. Tudo isso fortaleceu grupos ultraconservadores e o surgimento
de atores não estatais com discursos turbinados no ódio e ressentimento,
dois sentimentos que se tornaram o maior legado da ação imperialista no
Oriente Médio.
O menino morto numa praia da Turquia é a
imagem do fracasso, da violência, da injustiça e perversidade desta
“nova civilização” que nos foi prometida. Famílias se atiram ao mar para
fugir dos horrores das guerras e desequilíbrios da geopolítica global
tentando alcançar a “civilização”. O que encontram são fronteiras mais
rígidas, modelos econômicos cruéis e excludentes que só podem gerar em
seus seres humanos mais crueldade e exclusão. Não há quem possa acolher
os refugiados de guerra. Já estão todos desempregados e sob risco, não
há espaço para a generosidade.
O neoliberalismo joga um indivíduo
contra o outro. Faz com que os seres humanos culpem a si mesmos. No
esforço “recivilizatório” e na disputa insana por um lugar ao sol (ou à
sombra), disputamos mesquinhos, cada espaço nas empresas, nos hospitais,
nas universidades, no carnaval, nos aeroportos, nas faixas de trânsito,
no estacionamento dos shoppings.
Perdemos a capacidade crítica. Não há
outro mundo possível. As coisas são assim e pronto. Entregue seus
donativos na entidade beneficente mais próxima e durma tranquilo. Os
problemas políticos e conjunturais da nossa sociedade não são de nossa
responsabilidade. Aliás, a política não presta. Estamos em guerra uns
contra os outros. Somos todos mesquinhos e cruéis. Procuremos algum
retiro espiritual para rezar por nós mesmos. Vale tudo para que não
tenhamos a coragem de denunciar a canalhice dos nossos tempos. O
capitalismo! O imperialismo! O neoliberalismo! Este modelo que desgraça a
humanidade e faz com que sintamos vergonha de sermos homens e mulheres!
Há quem chore pela foto do menino morto na praia da Turquia igual a uma Miss deseja a paz mundial em algum concurso de beleza.
Porém, no dia-a-dia das grandes cidades
brasileiras, não pensa na dor do retirante, do desabrigado, do
sem-terra, dos Haitianos que vieram pra cá acreditando que seríamos
efetivamente diferentes, ou seja, mais misericordiosos, acolhedores,
receptivos e menos racistas. Não somos!
Porém, há sim ainda no coração da nossa
gente um amor que pode nos resgatar de tanta tristeza. Há ainda aquele
sorriso lindo que haverá ainda de iluminar o mundo.
Efetivamente, existem aqueles que acham
que as coisas são assim mesmo. Que não avançamos à barbárie. Que o mundo
é dos mais fortes.
Mas existem no mundo os espíritos
livres. Aqueles que tremem de indignação diante das injustiças. Quem não
pode aceitar um menino de três anos morrendo no mar, nem nenhum outro
ser humano tendo que buscar comida em meio ao lixo. Existem homens e
mulheres que certamente irão lutar por um mundo que persiga o fim da
fome, que cure os doentes, ao invés de bombas destrutivas.
Estes haverão de construir um novo futuro!
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