sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Sobre o menino morto no mar...

A queda do Muro de Berlim, transmitida pelas ondas televisivas mundo afora, foi celebrada como uma promessa de novos e felizes dias aos homens. 
As pessoas eram quase que obrigadas a celebrar a queda do muro. Muitos não entendiam muito bem o porquê. O que tinham a ver com aquela história que o repórter contava, fazendo força para chorar em frente à câmera. Estaríamos todos inaugurando uma nova etapa da nossa civilização.
Sem o muro – e a "ameaça socialista" – não haveriam mais fronteiras. 
Imediatamente, exigiu-se dos Estados mais pobres e desarmados que afrouxassem suas soberanias. Não haveria mais inimigos. Estaríamos todos em território comum.
A promessa sempre foi sedutora. Mas para alcançar o eldorado capitalista, deveríamos estar adequados à este novo tempo. O neoliberalismo exigiu (e exige) do homem um processo recivilizatório. Temos a permanente percepção de que estamos inadequados no mundo. Caso algo não ocorresse bem em nossas vidas, não haveríamos de identificar nenhum inimigo político ou estrutural. A culpa estaria dentro de nós mesmos. Deveríamos estar em condições de competir no Mercado, dentro dos novos padrões de eficiência.
Os anos 90 foi a década da explosão dos livros de autoajuda. Pronto! Passamos a ter em quase todas as prateleiras das livrarias (cada vez com menos livros, porém mais iluminadas e chamativas) manuais de como sobreviver neste novo mundo, seja no mundo profissional e corporativo, seja nas relações humanas cada vez mais marcadas pelas necessidades individuais e de euforia permanente. Sim, nossas relações pessoais passaram também a ser orientadas pela lógica descartável do consumo.
Não que o sonho dourado dos 90 tenha sido grande coisa. Na verdade, ele nunca passou de promessa. De ilusão. Tão frágil como um computador. Tão efêmero como uma super-liquidação. Tão instantâneo como uma novidade tecnológica.
Na prática, este sonho só pareceu possível de ser concretizado no quintal dos outros. Ou do outro lado da fronteira, do outro lado do mar.
Muitos se atiraram ao mar em jangadas, barcos, botes, nadando. Outros se entregaram aos chacais e foram perseguidos no deserto. Entregaram tudo o que tinham para narcotraficantes, aproveitadores e estelionatários para cruzar a fronteira dos Estados Unidos.
Por falar em fronteiras, descobrimos decepcionados que o mundo permanecia sim com muitas fronteiras, cada vez mais fortalecidas, eletrificadas, cercadas de cães selvagens e de seres humanos insensíveis que preferem perseguir seus semelhantes do que enxergar a olho nu a grande mentira deste sistema que nos prometia liberdade.
As fronteiras nunca foram tão vigiadas. Descobrimos estarrecidos que o mercado comum, os blocos econômicos, a zona do Euro, as comunidades internacionais e o mercado global permitem apenas a circulação de moedas, ações e mercadorias. Nós, seres humanos comuns de segunda classe, sobretudo os nascidos nas periferias do mundo, nunca fomos tão descartáveis e inconvenientes.
Devemos dar vivas e saudar as maravilhas da globalização ao desregularmos nossas garantias trabalhistas, nossas taxas alfandegárias. Devemos agradecer felizes ao perdermos nossos empregos, destruirmos nossas indústrias, abrimos mão das pesquisas. Ao entregarmos as riquezas naturais e minerais para os grandes cartéis internacionais.
Para obter lucro e estender os domínios deste “mercado comum”, o imperialismo construiu novas guerras. Derrubou governos, conspirou, despejou bombas e mais bombas em troca de dinheiro e petróleo. Atormentou as geopolíticas regionais. Desequilibrou o sistema político internacional. Enriqueceu genocidas, construiu novas ditaduras, se aliou a déspotas assassinos, grupos religiosos, desapropriou territórios, deixou milhões de seres humanos sem pátria e sem terra.
A “quebra das soberanias”, o desrespeito às culturas e particularidades locais, o sequestro dos Estados pelo Mercado. Tudo isso fortaleceu grupos ultraconservadores e o surgimento de atores não estatais com discursos turbinados no ódio e ressentimento, dois sentimentos que se tornaram o maior legado da ação imperialista no Oriente Médio.
O menino morto numa praia da Turquia é a imagem do fracasso, da violência, da injustiça e perversidade desta “nova civilização” que nos foi prometida. Famílias se atiram ao mar para fugir dos horrores das guerras e desequilíbrios da geopolítica global tentando alcançar a “civilização”. O que encontram são fronteiras mais rígidas, modelos econômicos cruéis e excludentes que só podem gerar em seus seres humanos mais crueldade e exclusão. Não há quem possa acolher os refugiados de guerra. Já estão todos desempregados e sob risco, não há espaço para a generosidade. 
O neoliberalismo joga um indivíduo contra o outro. Faz com que os seres humanos culpem a si mesmos. No esforço “recivilizatório” e na disputa insana por um lugar ao sol (ou à sombra), disputamos mesquinhos, cada espaço nas empresas, nos hospitais, nas universidades, no carnaval, nos aeroportos, nas faixas de trânsito, no estacionamento dos shoppings.
Perdemos a capacidade crítica. Não há outro mundo possível. As coisas são assim e pronto. Entregue seus donativos na entidade beneficente mais próxima e durma tranquilo. Os problemas políticos e conjunturais da nossa sociedade não são de nossa responsabilidade. Aliás, a política não presta. Estamos em guerra uns contra os outros. Somos todos mesquinhos e cruéis. Procuremos algum retiro espiritual para rezar por nós mesmos. Vale tudo para que não tenhamos a coragem de denunciar a canalhice dos nossos tempos. O capitalismo! O imperialismo! O neoliberalismo! Este modelo que desgraça a humanidade e faz com que sintamos vergonha de sermos homens e mulheres!
Há quem chore pela foto do menino morto na praia da Turquia igual a uma Miss deseja a paz mundial em algum concurso de beleza.
Porém, no dia-a-dia das grandes cidades brasileiras, não pensa na dor do retirante, do desabrigado, do sem-terra, dos Haitianos que vieram pra cá acreditando que seríamos efetivamente diferentes, ou seja, mais misericordiosos, acolhedores, receptivos e menos racistas. Não somos!
Porém, há sim ainda no coração da nossa gente um amor que pode nos resgatar de tanta tristeza. Há ainda aquele sorriso lindo que haverá ainda de iluminar o mundo.
Efetivamente, existem aqueles que acham que as coisas são assim mesmo. Que não avançamos à barbárie. Que o mundo é dos mais fortes.
Mas existem no mundo os espíritos livres. Aqueles que tremem de indignação diante das injustiças. Quem não pode aceitar um menino de três anos morrendo no mar, nem nenhum outro ser humano tendo que buscar comida em meio ao lixo. Existem homens e mulheres que certamente irão lutar por um mundo que persiga o fim da fome, que cure os doentes, ao invés de bombas destrutivas. 
Estes haverão de construir um novo futuro!

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