terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Reserva biológica de Tinguá: história e natureza ,num cenário de riqueza e abandono

 *Ricardo Portugal

Encravada na Serra do Mar, no Sudeste Brasileiro, a Reserva Biológica do Tinguá vem cumprindo papel socioambiental fundamental ao longo de nossa história. Sua área territorial compreende 24 mil hectares de Mata Atlântica, fazendo limites com Nova Iguaçu, Duque de Caxias, Petrópolis e Miguel Pereira, sendo reconhecida como importante bacia produtora de água potável, desde os tempos do Império.



Foi em 1880 que o Imperador D. Pedro II inaugurou a rede de captação que levou, em uma semana, a água das nascentes de Rio D’Ouro, Xerém, Tinguá e São Pedro até a capital, o Rio de Janeiro (sede da Corte), que padecia de uma crônica seca, provocada pelo desmatamento da Floresta da Tijuca. O engenheiro Paulo de Frontin foi o responsável por essa façanha, realizada pelo braço negro escravo. Tais represas da Serra do Tinguá abastecem, até os dias atuais, parte da população do Rio de Janeiro, Região Metropolitana e Baixada Fluminense, beneficiando milhões de pessoas.

Décadas após a queda da Monarquia, em 1941, criou-se a primeira unidade de proteção ambiental que se tem notícia naquela região. O governo de Getúlio Vargas decretou a Serra do Tinguá como “Floresta Protetora de Mananciais da União”, visando a proteção integral de seus recursos hídricos. Um total de 12 aquedutos e represas de captação dão a noção exata da grandeza e importância do Tinguá para o abastecimento atual, cobrindo aproximadamente 60% da população do Rio de Janeiro, como bacia hidrográfica contribuinte do Rio Guandu.



   Há também em seu interior a Estrada Real do Comércio, a primeira grande rota comercial de escoamento da produção cafeeira das inúmeras fazendas da região do Vale do Paraíba, que ligava a Vila de Iguassú (nossa atual Iguaçu Velha) à Província de Minas Gerais, alcançando a cidade de São João Del Rei no século XIX. Construída por sugestão da Real Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação do Reino do Brasil e Domínios Ultramarinos, a estrada constituída de pedras foi erguida pela mão-de-obra escrava e completou, em 2022, 200 anos de existência. A Reserva do Tinguá protege ainda um importante acervo histórico, como as ruínas da Vila de Santana das Palmeiras, no alto da serra.

Em 1989, após expressiva mobilização popular organizada e liderada por ambientalistas e moradores da região, com apoio de universidades como UFRJUFRRJ e UERJ, além de sindicatos e entidades da sociedade civil organizada da Baixada Fluminense, como o Sindicato dos Petroleiros de Duque de Caxias e a OAB/Nova Iguaçu, o governo José Sarney, através de um decreto federal datado de 23/05/89, transformou a Serra do Tinguá em Reserva Biológica, cujo objetivo principal é a proteção de amostra representativa da biodiversidade de Mata Atlântica e demais recursos naturais nela contidos, com especial atenção para os recursos hídricos, além da promoção e desenvolvimento de pesquisas científicas e educação ambiental com as populações de seu entorno.

   Tal decisão do governo acabou por tornar a Reserva Biológica do Tinguá (Rebio-Tinguá) a primeira e única Unidade de Conservação Ambiental do país criada a partir da vontade e da pressão popular, expressa no movimento intitulado “Pró Reserva Biológica do Tinguá”, ocorrido há 33 anos e que reuniu mais de dez mil assinaturas num abaixo-assinado físico (ainda não havia Internet) encaminhado ao Ministério do Meio Ambiente da época. Já naquele momento, o povo rechaçava a ideia de um “parque nacional” na região, proposta patrocinada e defendida por grupos econômicos, empresariais e políticos interessados única e exclusivamente em transformar a floresta do Tinguá num lucrativo negócio, criando ali um polo ecoturístico.

   Duas razões básicas justificaram a opção da população pela criação da Reserva Biológica na serra do Tinguá: a primeira foi a necessidade inadiável de proteção de seus mananciais hídricos, representados pela presença em seu interior e no entorno das represas e aquedutos da época do Império, e que até hoje funcionam em perfeitas condições, provendo água para a população.



Por seu formidável potencial hídrico e pela riqueza de sua biodiversidade de flora e fauna, a Rebio-Tinguá foi elevada, em 1993, à condição de Patrimônio Natural da Humanidade (foto anexa),na categoria de “Reserva da Biosfera da Mata Atlântica” pela UNESCO (órgão das Nações Unidas). A outra razão que moveu a população em defesa da criação da Reserva Biológica no maciço do Tinguá foi o risco de incêndio e poluição, representado pela presença de duas linhas de oleoduto e uma de gasoduto da Petrobras/Transpetro, os quais atravessam grande parte do subsolo da floresta.

   Na época, os ambientalistas defensores da Reserva Biológica asseguravam que não eram contrários à presença de visitantes naquela região, desde que essa presença ocorresse para fins de educação ambiental, devidamente autorizada pelas autoridades do Instituto Chico Mendes (ICMBio), órgão do governo federal responsável pela gestão de parques e reservas do país. Até hoje, pesquisadores, alunos de diversas escolas, grupos familiares e pessoas comuns têm podido entrar e visitar a Rebio-Tinguá, com expressa autorização das autoridades ambientais.

   Outros aspectos importantes também confirmaram e reforçaram a tese da necessidade de transformar o Tinguá em área de uso restrito (característica de uma reserva biológica). Exemplo disso foi a descoberta do menor anfíbio do mundo, o sapo-pulga, feita no interior da floresta do Tinguá pelo zoólogo e engenheiro agrônomo da Universidade Rural Eugênio Izecksohn. A madeira tapinhoã, a bromélia e o mineral tinguaíto, endêmicos na região, também comprovam a exuberância e a riqueza de sua biodiversidade.

Muitas espécies de flora e fauna na Reserva do Tinguá ainda não foram catalogadas pela Ciência, além de outras já em processo de extinção (porco  como a onça parda e o macaco bugio. A área é vista como de grande importância biológica, por abrigar 560 espécies arbóreas, 85 de mamíferos, 350 de aves e 34 de peixes, com populações de espécies de grande porte, como puma, queixada (porco-do-mato), veado mateiro e águia cinzenta. 

   Já eram comuns na região, muito antes do advento da Rebio-Tinguá, as agressões criminosas ao meio ambiente dentro e no entorno da UC. Caçadores, palmiteiros, ladrões de areia, carvoeiros, garimpeiros, passarinheiros e pedreiras clandestinas sempre marcaram presença na região de forma nociva, tanto no processo de pilhagem e depredação dos recursos naturais como na destruição da flora e fauna locais, incluindo-se nessa lista algumas preciosas vidas humanas covardemente ceifadas.

O maior exemplo de vítima desse cenário de horror foi o ambientalista Dionísio Júlio Ribeiro, covardemente assassinado por um caçador em 2005, crime ocorrido próximo a um dos portões de acesso à reserva biológica. “Seu Júlio”, como era carinhosamente chamado na comunidade do bairro de Tinguá, era um combativo militante ambientalista e aguerrido defensor da Rebio-Tinguá. Não dava trégua aos criminosos que atuavam (e ainda atuam) na região, denunciando-os às autoridades policiais e ao Ministério Público. Pagou com a vida por seu idealismo e amor extremo ao Tinguá.



   Decorridos 33 anos de sua criação, o inventário de perdas e o quadro de caos e abandono é o cenário reinante na UC (Unidade de Conservação), no que tange à sua proteção e conservação. De lá pra cá, a tônica predominante é a falta de políticas públicas para o meio ambiente local, onde o governo Bolsonaro não demonstra nenhum interesse, preocupação ou compromisso pela preservação daquela região, além de patrocinar e apoiar sua destruição, a exemplo do que faz no Pantanal e Amazônia.

A exemplo das demais unidades de conservação ambiental do país, a Reserva Biológica do Tinguá sofre com a falta de recursos próprios, uma vez que não possui autonomia financeira e administrativa. Com isso, fica na dependência da verba mensal repassada pelo Parque Nacional da Serra dos Órgãos, Unidade de Conservação a qual é subordinada. Para completar o quadro desolador, desde fevereiro de 2020 o Instituto Chico Mendes e o Ministério do Meio Ambiente fecharam a sede da Rebio-Tinguá, transferindo seus analistas ambientais (agentes fiscais e guardas florestais) para Teresópolis, cidade situada a 80 km de distância do Tinguá. Lá, foi criado o NGI (Núcleo de Gestão Integrada), órgão do ICMBio reunindo a gestão de 5 diferentes Unidades de Conservação, entre elas a Reserva Biológica do Tinguá.

   Com isso, a situação que já era ruim, piorou de vez. Não há mais fiscais florestais e agentes ambientais lotados de forma permanente na região, não há mais um diretor da UC, que também não dispõe mais de viaturas fixas para o trabalho fiscalizatório e de vigilância, que ocorre de maneira aleatória.

O resultado dessa política deliberada de desmonte administrativo ampliou o estado de abandono, com o aumento da caça clandestina e da extração de palmito, a prática de garimpo ilegal na zona de amortecimento (entorno), a construção de casas particulares no interior da reserva biológica, a invasão da floresta por grupos evangélicos que promovem cultos religiosos no local e deixam lixo quando vão embora, a implantação de trilhas ecológicas não autorizadas dentro da floresta promovidas por pousadas instaladas nos limites da unidade, além do risco de poluição das represas e aquedutos de captação de água, existentes no interior da reserva biológica.

   Apesar de todo esse cenário sombrio e negativo, a Reserva Biológica do Tinguá segue seu destino, cumprindo sua missão como grande símbolo de conquista da sociedade, a partir da luta popular. O atual cenário de caos, descaso e abandono da qual é vítima só nos deixa a sensação da urgência e necessidade inadiável de seguirmos pressionando por sua proteção e conservação, como legado a ser deixado para as futuras gerações.

   Por estar situada em grande parte na Baixada Fluminense, uma região marcada pela segregação e discriminação social, econômica e cultural, poucas pessoas são capazes de avaliar a real dimensão da importância da Rebio-Tinguá, inserida num cenário de história, beleza natural e abandono, reinantes naquele lugar.


*Ricardo Portugal é jornalista e ambientalista do Baia Viva

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