*Edson Amaro
Não morro de amores pelo PT – muito pelo contrário –
mas reconheço que desde Lula há duas inovações no plano da Educação que merecem
ser aplaudidas de pé: uma é a Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas
Públicas. As provas aplicadas anualmente são o tipo de questionário que eu
gostaria que tivessem aplicado na escola em que estudei, quando, criança e
adolescente, sofria estudando Matemática. Ensinaram-me a Matemática como uma
abstração e aquelas questões fundamentadas em textos que trazem para a vida
cotidiana as fórmulas matemáticas estimulariam meu interesse por essa matéria
ainda cheia de mistérios para mim. – Beijarei as mãos e pagarei um sorvete a
quem me disser que utilidade prática têm as equações de segundo grau.
Outra inovação importante é o Exame Nacional do
Ensino Básico – ENEM. Antes, alguém que quisesse cursar uma universidade teria
que se inscrever para o vestibular de cada instituição. Agora, ao fazer o ENEM,
o candidato concorre ao mesmo tempo para todas as universidades públicas do
país. Isso significa mais oportunidades e economia para os jovens pobres. A
relação custo-benefício é muito vantajosa para nossos estudantes.
Mas não foi apenas nisso que o ENEM inovou. A sua
redação, que sempre suscita polêmicas do Oiapoque ao Chuí, é uma inovação
quanto a tudo o que se vinha fazendo até agora em vestibulares e concursos
públicos.
Desde que existem vestibulares e concursos públicos,
as redações pedidas são textos dissertativos-argumentativos. O candidato apenas
tem que opinar sobre algum tema proposto. Por exemplo, da última vez que fiz um
concurso público para uma instituição federal, lemos um texto de Rosiska Darcy
de Oliveira falando sobre a velhice – resumo da ópera: a imortal dizia que não
se fazem mais velhos como antigamente – e a redação propunha que falássemos se
era ou não justo dizer que a velhice era a “melhor idade”, eufemismo que já
virou lugar comum. Ponto.
A redação do ENEM não se limita a isso. Não basta
apenas dar uma opinião sobre o tema proposto, mas é preciso fazer uma proposta
de intervenção acerca do problema social apontado. É isso que desespera nossos
jovens.
Desde que nascemos, não falta quem nos diga o que
fazer: a família, a igreja, a escola, a televisão, o governo – enxeridos não
faltam. E ninguém nos pergunta nada. Aí, num belo domingo ensolarado, um jovem,
a quem jamais ninguém perguntou coisa alguma, se vê diante do inaudito desafio
de dizer ao Leviatã – meu tributo a Hobbes, que resgatou lá no Livro de Jó esse
monstro fantástico para representar o Estado – o que ele deve fazer para
resolver ou, ao menos, minimizar um problema social.
A escola tradicional não prepara os jovens para esse
desafio. A escola tradicional apenas desenvolve nos jovens dois vícios nocivos
ao pensamento crítico: copiar e decorar – e distribui um ídolo chamado
“diploma”: a maioria das pessoas que dele se apossam passam a crer que sabem de
tudo e passam o resto da vida sem abrir um livro. E fazem-se esforços para
aumentar o número de diplomados, pois diplomas são quantificados pelas
estatísticas. E o resultado é uma massa pronta para ser manobrada pelos donos
do poder e do capital, que acreditará em qualquer coisa que um engravatado lhe
diga.
Vejamos um exemplo: em 2014, o tema foi a Lei Seca.
O que fazer para que menos pessoas dirijam alcoolizadas? E, dos textos que
serviam de ponto de partida para a discussão na prova, um versava sobre o fato
de que a lei que pune as pessoas que dirigem alcoolizadas fez com que se
reduzissem as estatísticas de acidentes de trânsito. Outro, extraído de um site
do governo estadual do Rio de Janeiro, falava de um bar em Belo Horizonte
(!!!!!!!!!!) que colocava diante dos clientes um porta-copos magnético que
tinha duas faces: uma que dizia “Pegue um táxi” e outra que dizia “Dirija”.
Quando o cliente tentava colocar o fundo do copo, também magnetizado, sobre o
porta-copos, a face que dizia “Dirija” repelia o copo e a que sugeria chamar um
táxi aderia ao copo. – Isso era mostrado como uma forma educativa de propaganda
produzida pela iniciativa privada. E o que eu vi nos textos rascunhados nos
cadernos abandonados no chão da escola era que a maioria dos candidatos ficou a
repetir o catecismo governamental: se beber não dirija, essa lei é justa e
benéfica, blá-blá-blá. Não encontrei nenhuma proposta de intervenção.
Fui para a sala de aula e coloquei a seguinte
questão: “Vocês, que moram em Itaboraí, poderiam ir a uma festa em Copacabana e
voltar tarde da noite sem dirigir? Partamos do princípio que um adulto tem o
direito de consumir bebidas alcoólicas. E não é proibido que ele fique bêbado.
Pode até ser pecado, mas a Constituição Federal nos garante que não precisamos
viver segundo os preceitos de igreja alguma. Então há dois direitos em jogo: o
direito de encher a cara e o direito de ir e vir. Mas o que impede o cidadão de
exercer o direito de ir e vir não é o fato de ele desejar beber: é o fato de
termos um transporte público ineficiente. No exemplo dado, vocês poderiam
chegar a Copacabana de metrô, mas na volta não contariam com ele, pois ele
funciona apenas até meia-noite. Se vocês saírem de lá antes da meia-noite,
podem pegar o metrô na estação Siqueira Campos e saltar na estação próxima ao
Largo da Carioca. De lá, bastava andar um pouco para chegar à Praça XV e pegar
a barca para Niterói. Quando chegassem a Niterói, já seria mais de uma da
manhã. Haveria como vocês voltarem a Itaboraí?” – A discussão acalorou-se. Uma
aluna disse que teria medo de andar por Itaboraí de madrugada alcoolizada, pois
poderia ser estuprada. Outra disse que uma mulher que anda sozinha de noite
bêbada só pode querer ser estuprada. Tive que responder que isso é errado: que
ninguém quer ser estuprada, que o estupro é o sexo forçado e que ninguém tem o
direito de forçar uma relação sexual, não importa qual seja o estado da vítima.
– Sim, Paulo Freire diz que o opressor é um parasita que se instala na
consciência do oprimido e faz com que ele considere justa a opressão. A fala
machista de uma jovem que acha natural que uma mulher seja estuprada por andar
sozinha à noite e alcoolizada demonstra que o machismo se instalou naquela
consciência. – “E táxi? Tem táxi por aqui à noite? Vocês têm dinheiro para
pagar um táxi?” E a discussão prosseguiu até chegarmos à conclusão de que, se
houvesse transporte público durante toda a noite, e policiamento ostensivo que
fizesse com que as pessoas, especialmente as mulheres, se sentissem seguras
para esperar pelo transporte, menos pessoas dirigiriam após beber. Mas ninguém
ali havia problematizado o transporte público na redação do ENEM, apenas
repetiram o catecismo governamental. – Um candidato ou candidata que escrevesse
sobre a necessidade de o metrô funcionar 24 horas certamente destacar-se-ia
entre os demais concorrentes.
As pessoas mais preparadas para a redação do ENEM
são aquelas que discutem política e duvidam de tudo, especialmente de um
jornalismo sensacionalista e de ampla audiência que repete diariamente que
bandido bom é bandido morto e que a Declaração dos Direitos Humanos existe
apenas para defender bandidos. E o povo, acostumado a ouvir sem questionar,
acredita. E o povo, que, na escola, copiou e decorou sem pesquisar, acredita.
Ao lermos a Declaração Universal dos Direitos
Humanos percebemos que ela é o mais importante documento já escrito até hoje,
pois ela prescreve a necessidade de defender princípios básicos sem os quais
não se pode ter uma vida digna. E essa Declaração é o limite da intervenção que
se pode propor ao Estado na redação do ENEM.
As pessoas mais preparadas para o ENEM serão aquelas
que frequentarem bibliotecas, teatros, salas de cinema, museus e,
principalmente, sindicatos, associações de moradores, reuniões de ativistas que
defendam as minorias (negros, indígenas, mulheres, LGBTs, portadores de
necessidades especiais etc).
O Brasil progredirá quando as pessoas entenderem que
a sala de aula é o lugar onde menos se aprende, que o conhecimento tem de ser
buscado e descoberto, que não se deve esperar que o professor entregue o
conhecimento como o garçom entrega o prato feito: o professor deve ser o
provocador, o instigador, o mediador e o comentarista das descobertas. – Mas
para tanto é preciso mudar o Estado, para que ele mude a escola pública e
garanta a todos os cidadãos o direito de fazer descobertas.
E ainda há obscurantistas que não querem que se fale
de política em sala de aula. Como então preparar o espírito crítico dos que
enfrentarão o desafio do ENEM?
Edson Amaro é professor de Língua Portuguesa da rede
pública estadual do RJ, tradutor, poeta e ator. Publicou pela editora Buriti
sua tradução de “Valperga”, de Mary Shelley e pela editora Fragmentos seu
primeiro livro de poemas: “Ouro Preto e Outras Viagens”.
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