segunda-feira, 4 de julho de 2016

A redação do ENEM e a sala de aula

*Edson Amaro
Não morro de amores pelo PT – muito pelo contrário – mas reconheço que desde Lula há duas inovações no plano da Educação que merecem ser aplaudidas de pé: uma é a Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas. As provas aplicadas anualmente são o tipo de questionário que eu gostaria que tivessem aplicado na escola em que estudei, quando, criança e adolescente, sofria estudando Matemática. Ensinaram-me a Matemática como uma abstração e aquelas questões fundamentadas em textos que trazem para a vida cotidiana as fórmulas matemáticas estimulariam meu interesse por essa matéria ainda cheia de mistérios para mim. – Beijarei as mãos e pagarei um sorvete a quem me disser que utilidade prática têm as equações de segundo grau.
Outra inovação importante é o Exame Nacional do Ensino Básico – ENEM. Antes, alguém que quisesse cursar uma universidade teria que se inscrever para o vestibular de cada instituição. Agora, ao fazer o ENEM, o candidato concorre ao mesmo tempo para todas as universidades públicas do país. Isso significa mais oportunidades e economia para os jovens pobres. A relação custo-benefício é muito vantajosa para nossos estudantes.
Mas não foi apenas nisso que o ENEM inovou. A sua redação, que sempre suscita polêmicas do Oiapoque ao Chuí, é uma inovação quanto a tudo o que se vinha fazendo até agora em vestibulares e concursos públicos.
Desde que existem vestibulares e concursos públicos, as redações pedidas são textos dissertativos-argumentativos. O candidato apenas tem que opinar sobre algum tema proposto. Por exemplo, da última vez que fiz um concurso público para uma instituição federal, lemos um texto de Rosiska Darcy de Oliveira falando sobre a velhice – resumo da ópera: a imortal dizia que não se fazem mais velhos como antigamente – e a redação propunha que falássemos se era ou não justo dizer que a velhice era a “melhor idade”, eufemismo que já virou lugar comum. Ponto.
A redação do ENEM não se limita a isso. Não basta apenas dar uma opinião sobre o tema proposto, mas é preciso fazer uma proposta de intervenção acerca do problema social apontado. É isso que desespera nossos jovens.
Desde que nascemos, não falta quem nos diga o que fazer: a família, a igreja, a escola, a televisão, o governo – enxeridos não faltam. E ninguém nos pergunta nada. Aí, num belo domingo ensolarado, um jovem, a quem jamais ninguém perguntou coisa alguma, se vê diante do inaudito desafio de dizer ao Leviatã – meu tributo a Hobbes, que resgatou lá no Livro de Jó esse monstro fantástico para representar o Estado – o que ele deve fazer para resolver ou, ao menos, minimizar um problema social.
A escola tradicional não prepara os jovens para esse desafio. A escola tradicional apenas desenvolve nos jovens dois vícios nocivos ao pensamento crítico: copiar e decorar – e distribui um ídolo chamado “diploma”: a maioria das pessoas que dele se apossam passam a crer que sabem de tudo e passam o resto da vida sem abrir um livro. E fazem-se esforços para aumentar o número de diplomados, pois diplomas são quantificados pelas estatísticas. E o resultado é uma massa pronta para ser manobrada pelos donos do poder e do capital, que acreditará em qualquer coisa que um engravatado lhe diga.
Vejamos um exemplo: em 2014, o tema foi a Lei Seca. O que fazer para que menos pessoas dirijam alcoolizadas? E, dos textos que serviam de ponto de partida para a discussão na prova, um versava sobre o fato de que a lei que pune as pessoas que dirigem alcoolizadas fez com que se reduzissem as estatísticas de acidentes de trânsito. Outro, extraído de um site do governo estadual do Rio de Janeiro, falava de um bar em Belo Horizonte (!!!!!!!!!!) que colocava diante dos clientes um porta-copos magnético que tinha duas faces: uma que dizia “Pegue um táxi” e outra que dizia “Dirija”. Quando o cliente tentava colocar o fundo do copo, também magnetizado, sobre o porta-copos, a face que dizia “Dirija” repelia o copo e a que sugeria chamar um táxi aderia ao copo. – Isso era mostrado como uma forma educativa de propaganda produzida pela iniciativa privada. E o que eu vi nos textos rascunhados nos cadernos abandonados no chão da escola era que a maioria dos candidatos ficou a repetir o catecismo governamental: se beber não dirija, essa lei é justa e benéfica, blá-blá-blá. Não encontrei nenhuma proposta de intervenção.
Fui para a sala de aula e coloquei a seguinte questão: “Vocês, que moram em Itaboraí, poderiam ir a uma festa em Copacabana e voltar tarde da noite sem dirigir? Partamos do princípio que um adulto tem o direito de consumir bebidas alcoólicas. E não é proibido que ele fique bêbado. Pode até ser pecado, mas a Constituição Federal nos garante que não precisamos viver segundo os preceitos de igreja alguma. Então há dois direitos em jogo: o direito de encher a cara e o direito de ir e vir. Mas o que impede o cidadão de exercer o direito de ir e vir não é o fato de ele desejar beber: é o fato de termos um transporte público ineficiente. No exemplo dado, vocês poderiam chegar a Copacabana de metrô, mas na volta não contariam com ele, pois ele funciona apenas até meia-noite. Se vocês saírem de lá antes da meia-noite, podem pegar o metrô na estação Siqueira Campos e saltar na estação próxima ao Largo da Carioca. De lá, bastava andar um pouco para chegar à Praça XV e pegar a barca para Niterói. Quando chegassem a Niterói, já seria mais de uma da manhã. Haveria como vocês voltarem a Itaboraí?” – A discussão acalorou-se. Uma aluna disse que teria medo de andar por Itaboraí de madrugada alcoolizada, pois poderia ser estuprada. Outra disse que uma mulher que anda sozinha de noite bêbada só pode querer ser estuprada. Tive que responder que isso é errado: que ninguém quer ser estuprada, que o estupro é o sexo forçado e que ninguém tem o direito de forçar uma relação sexual, não importa qual seja o estado da vítima. – Sim, Paulo Freire diz que o opressor é um parasita que se instala na consciência do oprimido e faz com que ele considere justa a opressão. A fala machista de uma jovem que acha natural que uma mulher seja estuprada por andar sozinha à noite e alcoolizada demonstra que o machismo se instalou naquela consciência. – “E táxi? Tem táxi por aqui à noite? Vocês têm dinheiro para pagar um táxi?” E a discussão prosseguiu até chegarmos à conclusão de que, se houvesse transporte público durante toda a noite, e policiamento ostensivo que fizesse com que as pessoas, especialmente as mulheres, se sentissem seguras para esperar pelo transporte, menos pessoas dirigiriam após beber. Mas ninguém ali havia problematizado o transporte público na redação do ENEM, apenas repetiram o catecismo governamental. – Um candidato ou candidata que escrevesse sobre a necessidade de o metrô funcionar 24 horas certamente destacar-se-ia entre os demais concorrentes.
As pessoas mais preparadas para a redação do ENEM são aquelas que discutem política e duvidam de tudo, especialmente de um jornalismo sensacionalista e de ampla audiência que repete diariamente que bandido bom é bandido morto e que a Declaração dos Direitos Humanos existe apenas para defender bandidos. E o povo, acostumado a ouvir sem questionar, acredita. E o povo, que, na escola, copiou e decorou sem pesquisar, acredita.
Ao lermos a Declaração Universal dos Direitos Humanos percebemos que ela é o mais importante documento já escrito até hoje, pois ela prescreve a necessidade de defender princípios básicos sem os quais não se pode ter uma vida digna. E essa Declaração é o limite da intervenção que se pode propor ao Estado na redação do ENEM.
As pessoas mais preparadas para o ENEM serão aquelas que frequentarem bibliotecas, teatros, salas de cinema, museus e, principalmente, sindicatos, associações de moradores, reuniões de ativistas que defendam as minorias (negros, indígenas, mulheres, LGBTs, portadores de necessidades especiais etc).
O Brasil progredirá quando as pessoas entenderem que a sala de aula é o lugar onde menos se aprende, que o conhecimento tem de ser buscado e descoberto, que não se deve esperar que o professor entregue o conhecimento como o garçom entrega o prato feito: o professor deve ser o provocador, o instigador, o mediador e o comentarista das descobertas. – Mas para tanto é preciso mudar o Estado, para que ele mude a escola pública e garanta a todos os cidadãos o direito de fazer descobertas.
E ainda há obscurantistas que não querem que se fale de política em sala de aula. Como então preparar o espírito crítico dos que enfrentarão o desafio do ENEM?


Edson Amaro é professor de Língua Portuguesa da rede pública estadual do RJ, tradutor, poeta e ator. Publicou pela editora Buriti sua tradução de “Valperga”, de Mary Shelley e pela editora Fragmentos seu primeiro livro de poemas: “Ouro Preto e Outras Viagens”.

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